Fantástica experiência que mostra que o conhecimento não tem dono, tem valores intrísecos de um povo.
Aprender com os pés-descalços – Bunker Roy
Fonte: TED – Ideas worth spreading.
Em Rajasthan, na Índia, uma escola extraordinária ensina mulheres e homens do meio rural – muitos deles analfabetos – a se tornarem engenheiros solares, artesãos, dentistas e médicos nas suas próprias aldeias. Chama-se Faculdade dos Pés-Descalços. Seu fundador foi Bunker Roy. A ideia é tornar as comunidades locais auto-suficientes. No vídeo, ele fala um pouco sobre ela.
TRANSCRIÇÃO (UM POUCO MODIFICADA) DAS LEGENDAS DO VÍDEO
Gostaria de
levar vocês a um outro mundo e compartilhar uma história de amor de 45
anos, com pessoas pobres que vivem com menos de um dólar por dia.
Eu tive uma
educação elitista, esnobe e cara, na Índia. E isso quase me destuiu. Fui
formado para ser diplomata, professor, médico. Estava tudo certo.
[...] O mundo inteiro estava à minha disposição. Eu tinha tudo aos meus
pés. Nada podia dar errado. Então pensei que, por curiosidade, gostaria
de ir morar e trabalhar numa aldeia, só pra ver como era. Era o ano de
1965, e eu testemunhei aquela que foi considerada a pior crise de fome,
em Bihar, na Índia. Vi fome e morte, pela primeira vez. Vi pessoas
morrendo de fome. Isso mudou a minha vida.
Cheguei em
casa e disse à minha mãe: “Quero ir morar e trabalhar numa aldeia”.
Minha mãe entrou em coma: “Como assim? O mundo inteiro à sua disposição,
os melhores empregos… Tem alguma coisa de errado com você?” Eu disse:
“Não. Eu tive uma formação das melhores e isso me fez pensar: eu queria
retribuir de alguma forma, do meu jeito”. “O que você vai fazer numa
aldeia? Sem emprego, sem dinheiro, sem estabilidade, sem perspectivas?”
Eu disse: “Eu quero ir morar e cavar poços durante cinco anos”. “Cavar
poços? Você frequentou a escola e a faculdade mais caras da Índia e você
quer passar cinco anos cavando poços?” Ela parou de falar comigo por
muito tempo, porque achava que eu tinha decepcionado a minha família.
Mas foi
então que eu pude ter contato com conhecimentos e habilidades dos mais
extraordinários, que as pessoas muito pobres têm e que nunca vêm ao
conhecimento público, nunca são identificados, respeitados e aplicados
amplamente. Tive a ideia de fundar uma Faculdade de Pés-Descalços, uma
faculdade só para pessoas pobres. O que as pessoas pobres considerassem
importante seria acolhido nessa faculdade.
Fui para uma
aldeia onde eu nunca tinha estado. Os mais velhos vieram e me
perguntaram: “Você está fugindo da polícia?” Eu disse: “Não.” “Você foi
reprovado na faculdade?” Eu disse: “Não.” “Você não conseguiu arranjar
um cargo público.” Eu disse: “Não é isso.” “O que você está fazendo
aqui? Por que você está aqui? O sistema de educação na Índia leva a ter
os olhos voltados para Paris, Nova Deli e Zurique. O que você está
fazendo nesta aldeia? Tem alguma coisa que você está escondendo de nós?”
Eu disse: “Não. Na verdade, eu quero abrir uma faculdade só para
pessoas pobres, que trate do que as pessoas pobres achem importante.”
Então eles me deram um conselho sensato e sábio: “Por favor, não traga
ninguém com titulação acadêmica ou qualificação profissional para a sua
faculdade”. Assim, essa é a única faculdade da Índia onde, se você tem
um doutorado ou um mestrado, não é visto como qualificado. Você tem de
ser um inconformado, um desgraçado ou um marginalizado para vir para a
nossa faculdade. Você precisa ser alguém que trabalha com as mãos. Tem
que ter a dignidade de um trabalhador. Tem que mostrar uma habilidade
que possa oferecer à comunidade, para prestar um serviço à comunidade.
Foi assim
que surgiu a Faculdade dos Pés-Descalços. E redefiniu profissionalismo.
Quem é um profissional? Um profissional é alguém em quem se combinam
competência, confiança e fé. Uma parteira tradicional é uma
profissional. Um oleiro tradicional é um profissional. Há profissionais
espalhados pelo mundo todo, em qualquer aldeia inacessível do mundo. E
acreditamos que essas pessoas tinham que entrar em cena e mostrar
que os conhecimentos e habilidades que elas têm são universais.
Precisamos usá-los, aplicá-los e mostrar para o mundo lá fora que esses
conhecimentos e habilidades ainda têm valor hoje em dia.
A faculdade
funciona de acordo com o estilo de vida e de trabalho de Mahatma Gandhi:
comer no chão, dormir no chão, trabalhar no chão. Não tem contratos
formais, escritos. Você pode ficar vinte anos ou ir embora amanhã. E
ninguém pode receber mais do que 100 dólares por mês. Quem vier pelo
dinheiro, não entra para a Faculdade dos Pés-Descalços. Quem vier pelo
trabalho e pelo desafio, entra para a Faculdade dos Pés-Descalços. Lá
queremos que sejam postas em prática ideias malucas. Se você tiver uma
ideia, venha testar. Não tem problema se der errado. Decepcionado e
ferido, você pode começar de novo. É a única universidade onde o
professor é aprendiz, e o aprendiz é professor. É a única universidade
que não dá diploma. Você é diplomado pela comunidade à qual presta
serviço. Não precisa de um papel para pendurar na parede para mostrar
que é engenheiro.
Quando eu
tive essa ideia, os mais velhos da aldeia disseram: “Bom, prove que isso
é possível. É pura conversa enquanto você não puser em prática”. A
primeira Faculdade dos Pés Descalços surgiu em 1986. Foi construída por
doze arquitetos de pés-descalços, que não sabem ler nem escrever.
Construída por um dólar e meio o metro quadrado. Cento e cinquenta
pessoas moraram ali, trabalharam ali. Receberam o prêmio Aga Khan de
Arquitetura em 2002. Mas aí houve a suspeita de que tivesse algum
arquiteto por trás. Eu disse: “É verdade, eles fizeram as plantas, mas
os arquitetos pés-descalços foram os que efetivamente construíram a
universidade”. Nós fomos os primeiros a devolver o prêmio de 500.000
dólares, porque não acreditaram em nós, e nós achamos que aquilo era um
insulto para com os arquitetos pés-descalços da Tilônia.
Consultei um
especialista, qualificado: “O que dá para plantar nesse lugar?” Ele
olhou o terreno e disse: “Sem chances, não cresce nada aqui: não tem
água, solo rochoso…” Eu, lá no terreno, pensei: “Bom, vou procurar um
dos anciãos”. Perguntei: “O que dá para plantar neste lugar?” Ele me
olhou bem tranquilo e disse: “Isso, aquilo, tal outra coisa vai dar
certo”. E essa é a cara que aquilo lá tem hoje [Foto das plantas no
vídeo].
No telhado,
as mulheres disseram: “Pode ir saindo daqui! Os homens têm que sair
porque nós não vamos passar essa tecnologia para homens. Estamos
impermeabilizando o teto.” Vai um pouco de açúcar mascavo, um pouco de
urina, alguma coisa mais que eu não sei, mas não tem mesmo infiltração.
Desde 1986, nunca entrou água. E essa é uma tecnologia que as mulheres
não ensinam para os homens.
É a única
universidade totalmente abastecida por energia solar. Toda a energia vem
do sol, de painéis de 45 kilowatts no telhado. Tudo vai funcionar à
base de sol nos próximos 25 anos. Enquanto o sol brilhar, não vamos ter
falta de energia. E o bonito é que tudo aquilo foi instalado por um
padre, um padre hindu que só cursou os oito anos do ensino primário. Não
tem ensino secundário, nunca pisou numa faculdade. E ele sabe mais
sobre energia solar do que qualquer outra pessoa que eu conheço no
mundo, sem dúvida.
Se um dia
vocês forem lá, vão ver que tudo é cozinhado com energia solar. As
pessoa que fabricaram o fogão à energia solar são mulheres. São mulheres
analfabetas que fabricam o fogão solar mais sofisticado: um fogão solar
movido a parabólica Scheffler. Infelizmente elas são quase meio-alemãs,
de tanta precisão. Vocês nunca vão encontrar mulheres indianas capazes
de tanta precisão. Elas conseguem fazer o fogão com precisão em cada
mínima polegada. E nós temos 60 refeições, duas vezes por dia, que são
feitas com energia solar.
Também temos uma dentista. É uma senhora que é avó, analfabeta, e é dentista. Ela trata os dentes de 7.000 crianças.
Desde 1986 –
sem nenhum arquiteto ou engenheiro envolvido nisso -, estamos coletando
água dos telhados. Há muito pouco desperdício de água. Todos os
telhados estão ligados a um tanque de 400.000 litros no subsolo, e pouca
água se perde. Se tivéssemos uma seca de quatro anos, ainda assim não
faltaria água no campus, graças à coleta de água das chuvas.
Normalmente,
60% das crianças não vão à escola, porque elas precisam cuidar dos
animais, fazer trabalhos domésticos… Por isso nós pensamos em criar uma
escola noturna para as crianças. Na Tilônia, mais de 75.000 crianças
frequentam essas escolas noturnas, porque elas são adequadas aos
horários das crianças, não dos professores. O que ensinamos nessas
escolas? Democracia, cidadania, como medir o seu terreno, o que você
deve fazer se for preso, o que fazer quando um animal está doente. É
isso o que ensinamos nas escolas noturnas. Todas as escolas são
iluminadas com energia solar. A cada cinco anos fazemos uma eleição. As
crianças entre 6 e 14 anos participam de um processo democrático e
elegem um primeiro-ministro. A atual primeira-ministra tem 12 anos. De
manhã, ela toma conta de vinte cabras, mas à noite ela é a
primeira-ministra. Tem um governo, um ministro da educação, um ministro
de energia, um ministro da saúde. Eles acompanham e supervisionam 150
escolas com 7.000 crianças. Ela recebeu o Prêmio das Crianças do Mundo
há cinco anos e viajou para a Suécia. Foi a primeira vez que ela saiu da
aldeia. Nunca tinha visto a Suécia. Não estava nada deslumbrada com o
que estava acontecendo. A rainha da Suécia se virou para mim e disse:
“Pregunte a essa criança onde ela arranjou tanta auto-confiança. Ela só
tem 12 anos! E não está desconcertada com nada.” E a garota, à esquerda
dela, se virou para mim, olhou para a rainha bem nos olhos e disse: “Por
favor, explique a ela que eu sou a primeira-ministra”.
Onde a
porcentagem de analfabetismo é muito alta, usamos fantoches. Eles são
nosso meio de comunicação. Temos o Jaokim Chacha, que tem 300 anos. Ele é
meu psicanalista, meu professor, meu médico, meu advogado, meu
patrocinador. Ele arrecada dinheiro e resolve disputas. Resolve os
problemas na aldeia. Quando as coisas ficam tensas na aldeia, se a
frequência às aulas cai, se há algum atrito entre um professor e um pai,
o fantoche chama o professor e o pai diante da aldeia e diz: “Façam as
pazes”. “A frequência às aulas não deve cair…” Esse fantoches são feitos
de relatórios reciclados do Banco Mundial.
Essa
abordagem descentralizada, desmistificada, do abastecimento de
eletricidade das aldeias com energia solar, está por toda a Índia, desde
Ladakh até o Butão. Tudo com energia elétrica instalada por pessoas que
receberam formação. Fomos a Ladakh e perguntamos a esta mulher [foto no
vídeo], a 40 graus negativos – era impossível ficar no telhado porque
estava tudo coberto de neve por todos os lados. Perguntamos: “Qual foi o
benefício do abastecimento solar de energia?”. Ela pensou um pouco e
disse: “É a primeira vez que eu consigo ver a cara do meu marido no
inverno”.
Fomos para o
Afeganistão. Uma lição que aprendemos na Índia foi que é impossível
ensinar os homens: homens são inquietos, homens são ambiciosos, homens
são compulsivamente nômades… e todos eles querem um diploma. É uma
tendência no mundo todo: os homens querem um diploma. Por quê? Porque
eles querem sair da aldeia e ir para a cidade, para procurar um emprego.
Então encontramos uma solução ótima: ensinar as avós. Qual é a melhor
forma de se comunicar no mundo de hoje? A televisão? Não. O telégrafo?
Não. Telefone? Não. Telemulher: conte para uma mulher. Chegamos no
Afeganistão, escolhemos três mulheres e dissemos que queríamos levá-las
para a Índia. Disseram: “Impossível. Elas não saem nem dos próprios
quartos e vocês querem levá-las para a Índia…” Eu disse: “Faço uma
concessão e levo junto os maridos”. Levei os maridos com elas. E é
evidente que as mulheres eram muito mais inteligentes do que os homens.
Seis meses depois, como tínhamos mudado essas mulheres? Com linguagem
gestual. Não usamos a palavra escrita. Não usamos a palavra falada.
Usamos linguagem gestual. Em seis meses elas se tornaram engenheiras
solares, voltaram e instalaram energia solar na sua própria aldeia. Esta
mulher voltou e instalou redes de energia solar na primeira aldeia,
montou uma oficina. A primeira aldeia abastecida com energia solar no
Afeganistão foi obra de três mulheres [imagem no vídeo]. Esta mulher
[imagem no vídeo] é uma avó extraordinária. Tem 55 anos e instalou
energia solar para mim em 200 casas do Afeganistão. E elas não
desabaram. Tem mais: ela foi falar com um departamento de engenharia no
Afeganistão e acabou explicando para o chefe do departamento a diferença
entre AC e DC (corrente alternada e estacionária, respectivamente). Ele
não sabia… Aquelas três mulheres ensinaram outras 27 mulheres, que
levaram energia elétrica para 100 aldeias do Afeganistão, energia solar.
Fomos para a
África e fizemos o mesmo. Todas essas mulheres sentadas à mesma mesa
[imagem no vídeo], que são de oito ou nove países, todas elas estão
conversando entre si, sem entender uma palavra, já que falam línguas
diferentes, mas a linguagem corporal delas é extraordinária. Elas estão
conversando entre si e se tornando engenheiras solares.
Fui para
Serra Leoa. Um dia, um ministro que ia dirigindo pela estrada à noite
passou por uma aldeia, deu meia-volta, entrou na aldeia e perguntou: “O
que é isso aqui?” Responderam: “Foram essas duas avós”. O ministro não
acreditava naquilo: “Para onde elas foram?” “Foram para a Índia e
voltaram”. Ele foi procurar o presidente e disse: “Sabe que há uma
aldeia abastecida com energia solar em Serra Leoa?” Ele disse: “Não”. A
metade do governo foi visitar as avós no dia seguinte: “Queremos saber
direito essa história”. Aí o presidente me chamou e disse: “Você pode
ensinar mais 150 senhoras para mim?” Eu disse: “Eu não posso, senhor
presidente. Mas as mulheres que fizeram as instalações na aldeia podem.”
Foi assim que ele construiu para mim o primeiro centro de ensino
Pés-Descalços em Serra Leoa. E 150 avós foram ensinadas em Serra Leoa.
Gâmbia…
Fomos à Gâmbia para selecionar uma avó. Chegamos numa aldeia. Eu sabia
qual das mulheres gostaria de levar. A comunidade se reuniu e disse:
“Leve essas duas mulheres aqui.” Eu disse: “Não. Eu quero levar esta
aqui.” Eles disseram: “Por quê? Ela não sabe a sua língua, você não a
conhece…” Eu disse: “Eu gosto da linguagem corporal dela, gosto de como
ela fala.” “Bom, ela tem um marido meio complicado, não vai dar.”
“Chamem o marido”. O marido apareceu: fanfarrão, político, de celular na
mão… Eu disse: ” “Nem pensar”. “Como não? Veja só, ela é bonita…” Eu
disse: “É, ela é muito bonita.” “E se ela fugir com um indiano?” Era
esse o medo deles… Eu disse: “Ela vai ficar bem. Vai ligar para o
celular dele e tal.” Ela chegou como uma avó e voltou como um tigre.
Desceu do avião e falou com a imprensa como se fosse uma veterana. Lidou
com a comunicação social nacional e virou uma estrela. Quando eu
voltei, seis meses depois, perguntei: “Onde está o seu marido?” Ela
disse: “Ah, ele está por aí, não importa.” Uma história de sucesso…
Queria
terminar dizendo apenas o seguinte: eu acredito que não é preciso
procurar soluções no exterior. Procurem as soluções dentro. Escutem as
pessoas que têm as soluções bem na frente de vocês. Elas existem no
mundo todo, não há com que se preocupar. Não dêem ouvidos ao Banco
Mundial: escutem as pessoas do lugar. Elas têm todas as soluções do
mundo. Termino com uma citação de Mahatma Gandhi:
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